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O dilema da resiliência

 

Marco Antonio Spinelli*

Devo confessar que, apesar da evidente manipulação de resultados e corrupção em todos os níveis, continuo gostando muito de futebol e, como tal, sofro como torcedor e como psiquiatra e psicoterapeuta quando torço. Dentro dessa área de expertise, tive uma sensação desagradável quando o Brasil passou pela frágil seleção da Coréia do Sul, nas oitavas da Copa do Mundo do Catar. Todo mundo querendo fazer dancinha, o Tite fazendo a dança do Pombo, aquilo me parecia muita festa para pouca conquista. E comemorar antes da hora costuma ser uma péssima ideia, sempre. Isso se refletiu no jogo seguinte, contra a Croácia. Como muita gente faz contra o Brasil, a Croácia colocou dois ônibus na frente da área e ficou mais preocupada em impedir o Brasil de jogar do que jogar o seu jogo. Na prorrogação, Neymar fez algo muito raro em sua carreira: na hora do aperto, na hora da maior angústia, colocou a bola debaixo do braço e resolveu, sozinho, enfileirando a defesa daqueles retranqueiros e fazendo o que seria o gol da passagem para a semifinal. Aí todo mundo resolveu se mandar para o ataque, a Croácia pegou uma bola no escanteio, Casemiro não fez a falta com medo de tomar cartão, os caras empataram e o resto da história todo mundo conhece. O time das dancinhas desmoronou na primeira grande adversidade em seu caminho.

A Argentina começou muito mal a Copa, com uma derrota histórica para a Arábia Saudita. O seu técnico, Scaloni, estava emputecido com a péssima forma física que grande parte do elenco apresentava para uma Copa no meio do deserto. Foi ganhando jogos na bacia das almas e utilizando quase todo seu elenco, num rodízio para compensar o mal estado físico dos caras. Como ele tinha um gênio e alguns excelentes jogadores, Scaloni colocou o time para correr por Messi, que tinha liberdade para criar e atacar em qualquer canto do ataque. A Argentina partia para cima e tentava abrir uma vantagem inicial, segurando depois o resultado. Ficou em maus lençóis duas vezes, contra a Holanda e na Final, contra a França, porque os caras empataram, mas, nos pênaltis, a Argentina contava com um gênio, Dibu Martinez, no gol, o que garantiu o caneco para os Hermanos.

Por que estou tocando nessas duas recentes feridas futebolísticas? Porque elas servem de modelo para dois conceitos fundamentais descritos não por um psicoterapeuta, mas um economista, Nassim Taleb: os conceitos de Resiliência e Antifragilidade.

Em nossa vida prática, temos a oposição entre Fragilidade e Resiliência. Criticamos a Geração Z que apresenta uma impressionante fragilidade diante da vida Real. Qualquer traque que estoure e está todo mundo virando paçoca. O que se tenta para contraponto é criar pessoas resilientes, que aguentem o tranco sem chorar pelos cantos ou derreter na hora da apresentação mais importante. Alguém que tolere a dúvida, o medo do fracasso, a incerteza, sem desmoronar. Taleb descreveu um modelo mais complexo, que é a Antifragilidade. O termo é horrível, porque parece que tenta erradicar do sistema toda a fragilidade, e não é o caso. Antifragilidade é a capacidade de tirar proveito e se fortalecer a partir do conhecimento da própria fragilidade. De preferência, crescer a partir da experiência adversa. Além do estresse pós traumático, o crescimento pós traumático. Como dizia a frase de Nietzshe: “Aquilo que não me mata, só me fortalece”.

Tite tentou montar um time Resiliente: jogo posicional, muitos jovens talentosos no ataque, uma defesa sólida, bem postada, imune a tomar gol. Parecia uma equação perfeita: um time que não toma gol com atacantes jovens, abusados e rápidos. Ledo engano. Toda Resiliência esconde em seu íntimo uma profunda Fragilidade. Toda autossuficiência esconde uma profunda fragilidade. No único ataque da Croácia, a zaga não chegou a tempo, o goleiro pulou atrasado. E, nos pênaltis, nosso time virou geléia como um estagiário fazendo uma apresentação importante.

A Argentina construiu seu time encima da percepção da própria fragilidade: a falta de preparo físico obrigou seu técnico a colocar quase todo mundo para jogar. Isso foi muito útil na final épica com a França. A Argentina, por se expor mais, estava estranhamente mentalizada para enfrentar situações difíceis e aparentemente impossíveis. Contra a Croácia, o Brasil ficou todo prudente e certinho, como um time de pebolim. Contra a Croácia, a Argentina foi logo colocando o Messi para abrir buracos na defesa e fazer os gols que colocaram os caras na final.

As dificuldades deixaram seus jogadores mais aptos a enfrentar adversidades sem virar geleia. Note que, desde o primeiro jogo, a Argentina enfrentou mais e mais dificuldades, até o pódio.

Antifragilidade é a verdadeira Resiliência. Como já dito em outros artigos, Proteção Desprotege.

 

 

*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação younguiano e autor do livro Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa


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